LUENA ESTÁ A FICAR “SEM HISTÓRIA E SEM DONO”



Luena - A cidade do Luena, capital da província do Moxico, está a ficar “sem história e sem dono”, devido ao elevado nível de degradação do sistema de macro-drenagem, construção desordenada e destruição de sítios de valores históricos, segundo disse, em entrevista à ANGOP, o investigador cultural Salvador Cacoma.

Chegado ao Luena em 1972, Salvador Cacoma tem-se revelado ao longo dos anos um conhecedor e perspicaz investigador cultural do Leste de Angola, em particular do Moxico.

Nessa primeira Grande Entrevista concedida à ANGOP para falar dos 56 anos de existência do Luena, capital da província do Moxico, o académico faz revelações a considerar sobre a “extinção em andamento” da cidade.

Segue a íntegra da Grande Entrevista conduzida pelo jornalista Yambeno Daniel Jamba:

ANGOP - No dia 18 de Maio, a cidade do Luena (antiga vila Luso), capital da província do Moxico, vai celebrar mais um ano de existência desde a sua fundação, em 1956. O que muita gente não sabe é como, realmente, surgiu esta cidade. Pode, por favor, contar-nos a história do Luena?

Salvador Cacoma - A cidade do Luena surgiu da necessidade de se desarticular da província do Bié, no quadro das delimitações do território, em função da Conferência de Berlim. O Governador António de Almeida, fundador da cidade, entendeu que a cidade do Luena deveria sair do antigo posto administrativo chamado de Moxico-Velho ou Muximoji, nome autóctone.

Nessa conformidade, a 23 de Dezembro de 1921, o então governador português António de Almeida, ordenou que as casas de pau-a-pique fossem destruídas e substituídas pelas de adobes ou de tijolos.

ANGOP – E depois surgiram, imediatamente, as tais casas?

SC - A cidade do Luena registou três fases na sua construção. A da publicação do Decreto da Criação da Cidade, da então organização do governador de distrito que ordena ter casas com outras características paisagísticas, arrastou-se até ao 25 de Abril (de 1974).

Essa construção concretizou-se começando com a parte de cima da cidade (norte), que inicia na estação do Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB), ao centro da cidade, no actual Hotel Luena. As residências existentes nesses quarteirões têm um modelo muito antigo, consubstanciado em casas pequenas de tijolos e/ou feito de terras simples ou de adobes misturado com paus.

A tendência dos quarteirões serem divididos por longos e lindos jardins, partiu da necessidade de se construir uma Cidade Jardim, dividida por avenidas, com árvores e acácias vindas de Benguela, mais concretamente no município do Cubal, porque a engenheira que desenhou a cidade do Luena foi a mesma que fê-lo no município do Cubal.

ANGOP - Volto um pouco ao início dessa entrevista para lembrar-lhe: afinal, como a actual população do Luena chegou aqui, onde é Luena, hoje?

SC - Todas as pessoas que estão aqui na cidade do Luena são imigrantes. O seu território principal era o império Rundi (actual Império Lunda, 2º grande império depois do Reino do Congo), até então liderado por Kondi Ya Mateta, pai de Tchingunji, Tchinhama, Lueji, Calumbo e Ndonji.

Após um conflito familiar entre esses três irmãos, as pessoas vieram ao território que agora é Luena, à procura de terras e paz para se viver, depois do conflito com a Lueji e o Tchinhama, antigo grande Chefe do actual território do Moxico, o seu irmão Tchinguji representava o Bié e Malange e Ndonji nas Lundas. Daí em diante foram-se desenvolvendo, após deixarem o sul do Cassai, onde viria a nascer a Lunda.

Na verdade, a cidade do Luena começou a ser construída no Cangamba, vila sede do município dos Luchazes, 334 quilómetros a sul, aqui onde está instalada a cidade do Luena foi descoberta muito tempo depois, com a necessidade de encravar a cidade ao Caminho-de-Ferro de Benguela (CFB) que iria ligar a RDC Congo (antigo Zaíre).

Moxico, de uma forma geral, foi construído muito tarde, porque foi projectada para ser uma colónia penal, por isso começou-se em Cangamba, Lumbala-Nguimbo.

ANGOP - Fala-se também de uma área que era exclusivamente para os indígenas…

SC - A parte histórica do desenvolvimento da cidade do Luena é a que vai do sector de Identificação Civil até ao cemitério antigo (centro sul da cidade). Ali, nota-se que as construções das moradias já não eram acompanhadas por lojas. As suas residências modernas transformaram a zona em área de desenvolvimento do Luena, na altura.

A área de que fala é a sul da cidade, onde foi construído o Hospital Indígena, anos depois transformado em estabelecimento penitenciário. Portanto, considerado o hospital das pessoas “atrasadas” (pretos).

A nível das igrejas, havia apenas uma, a Católica, no antigo bairro Espírito Santo, hoje Kwenha, e a Missão Velha, no Mandembue.

Mais tarde, surgiram bairros urbanizados, dos quais nasceu o Santa Rosa, a oeste da cidade, apelidada por zona residencial, a norte, o Tchifuchi (nome que homenageia um dos primeiros secretários e coordenadores da JMPLA no Luena), uma área que fazia parte do Centro Recreativo dos Funcionários do CFB, onde ainda se podem encontrar o CODEM (paralisado nos anos 70) e piscinas.

ANGOP - Já se sabe das dificuldades que os autóctones enfrentaram para estudar, na altura. Também passou por esse processo?

SC - Na altura, só havia três escolas: uma do ensino primário, a nº 53 (localizada no centro da cidade), a antiga escola do Puniv, ao lado da Escola Camarada Tchifuchi, a sul da cidade, e o Liceu, a leste.

Mais tarde surgiu também o Magistério Primário, mais a leste da cidade do Luena, transformado, desde 2010, em Instituto Superior Politécnico do Moxico, a única escola pública desse nível. Como vê, nesse ambiente que conto, com reduzidas escolas, era difícil um nativo estudar. A escola era para os assimilados.

Em termo de diversão, a cidade do Luena tinha sido projectada para possuir duas salas de cinema: uma a leste, denominada Cine Teatro Luena, e outra a oeste, no bairro Santa Rosa. Não foi acabado até a revolução. Em 1977 passou a Museu da Revolução, pelo facto da revolução quase ter terminado aqui, onde se proclamou as Forças Armadas Angolanas, e o ambiente para a independência.

Ao lado do Museu da Revolução havia o bairro dos trabalhadores afectos a Administração Municipal do Luso, conhecido por Bairro Popular. O Santa Rosa era o bairro residencial dos assimilados. Quem não era assalariado não podia ficar aí, devido o alto custo de vida.

ANGOP – Chegados aqui, pode-se dizer que o coração do Luena era o Bairro Santa Rosa?

SC - Não, não e não. O cartão-de-visita da cidade do Luena é o Hotel Luena, é o “coração” e símbolo desta cidade, por estar situado no centro da mesma. Até hoje, muita erradamente diz-se que o “coração” da cidade é o Monumento a Paz.

O Monumento a Paz está dentro do Jardim Lénine, e este se encontrava naquilo que se chamava Parque de Reserva Natural, porque as plantas que estão no Jardim Lénine são as que compunham a cidade do Luena antes de ser cidade.

Nele, no Parque de reserva Natural, podia-se encontrar animais como leões, elefantes e crocodilos, que desapareceram nos anos 70, após o 25 de Abril e com a presença da guerrilha dos três movimentos de libertação nacional (MPLA, UNITA e FNLA).

ANGOP – É honesto ou justo afirmar-se que actualmente a cidade do Luena está mais moderna?

SC – Hoje, a cidade do Luena está a ficar suja. A arquitectura do Luena tinha sido projectada para ser uma cidade residencial moderna, de acordo com as suas avenidas. Hoje, estamos a ver que na cidade do Luena, cada um quer destruir um edifício e fazer como bem entender. Estamos a ter uma cidade sem história, sem dono.

Antigamente, com a governação colonial, havia ordem. Tudo que se podia fazer nessa cidade deveria passar por uma aprovação, ser avaliado. Há sítios históricos que estão a ser destruídos. O Moxico tem muitos monumentos que estão a ser vandalizados a olho nu, exemplo do antigo Cemitério Municipal, que está cercado de casas, bem como outros edifícios.

Outro exemplo claro disso é o estádio Mundunduleno, que está em local inapropriado. Aí (no Bairro Mandembue), no CFB, é local para história dessa empresa de transporte. O Bravos do Maquis está ligado à história de luta, então o estádio Mundunduleno, do Maquis, deveria ser construído no bairro dos Antigos Combatentes. É triste ver que o estádio está entre os eucaliptos, ao longo do CFB, e o centro de treinos, no outro bairro sem história de maquis.

ANGOP – Qual então a fórmula mágica para que a governação actual mantenha o Luena no rumo que merece?

SC - Há que se conservar a estrutura arquitectónica e paisagística da cidade. O que está a falhar ao governo é ter a coragem de construir uma nova cidade. As pessoas estão a evoluir e querem outros interesses e dinamismo.

O governo tem de preparar lugar ou terrenos para quem quer construir uma nova tipologia de residências e manter a essência histórica colonial do Luena preservada. O governo, até agora, não tem um espaço para construir uma nova cidade. É altura de pensar que temos o Luena como cidade histórica e para uma nova cidade ou vamos ao Sacassange ou ao Moxico velho. Ainda há lá espaço.

Aconselho o governo a parar de conceder licença para destruir a cidade. Há pessoas que vêm com seu interesse, não da maioria. Há património histórico que deve ser respeitado. Perdemos o cemitério do Soba Capata e do Sinai velho.

ANGOP – Em função dos seus conhecimentos sobre o plano urbanístico de uma cidade projectada para 300 mil pessoas, para onde se alargaria o Luena, dado o processo natural de seu crescimento demográfico?

SC - Era para oeste e para sul. Quem vai para o (bairro) Sangondo (bairro sem urbanização nos arredores do Luena) já poderia encontrar arruamentos, lancis, a construção já estava a começar, dando continuidade do Santa Rosa, a tal área residencial dos assimilados.

A zona industrial foi projectada para o bairro Mandembue, entre a estação do CFB e o aeroporto.

A cidade moderna, com edifícios, seria construída no lado sul do rio Luena (bairro Kawango), que poderia ser chamado de Cidade Alta, igual a urbe do Huambo, iniciando a sul do rio Luena, em direcção a localidade de Sacassange, no âmbito do denominado Plano Luso.

ANGOP – Mas a cidade do Luena já foi uma mini-potência na produção industrial. O que se produzia de concreto?

SC - A cidade do Luena possuía uma zona industrial, situada ao longo do CFB, no espaço onde foram erguidos o Hotel IU e o supermercado Nosso Super. Na Zona Industrial produzia-se tacos, bebidas espirituais, chapas de zinco e panelas.

No “corredor do Lobito”, as únicas cidades turísticas, eram Luena e Benguela. Huambo foi projectado para ser uma cidade industrial de facto, uma cidade metropolitana. Toda a gente que quisesse ir à RDC e Tanzânia, tinha o Luena como paragem obrigatória.

Esperava-se aqui o comboio. Por isso é que a cidade tem jardins, dava conforto. A estátua de António de Almeida, defronte a estação do CFB, Jardim do Ambiente, Hospital do Trabalhador (edifício da UNTA), que ao lado há o pavilhão 27 de Março, além da piscina olímpica do CODEM, cines, Hotel Continental, Hotel Luena, museus e outros monumentos e sítios históricos.

ANGOP – E em termo culturais, o que dizer?

SC - Em termos de cultura havia um perfil aceitável. A maneira de vestir e estar desse povo era mais conservadora. Mantinham os nomes, ritos e crenças. Não se deixaram levar pelas influências europeias.

No que as danças dizem respeito, continuam as mesmas. Para as danças recreativas há o macopo e chambre, para cerimoniais as cachachas, a chianda, o chohongo, o unema, além das de intervenção e de luta de caçadores.

ANGOP – Como se lidavam com as advinhas ou mahambas, práticas milenares dos chokwe?

SC - Só não se aceitava a adivinha. Só tinha autorização de o fazer quem passa num teste submetido pela Administração Municipal e se dissesse de forma concreta então passaria a adivinhar. Quem não conseguisse levava chibatadas.

ANGOP – Como lidavam com o Carnaval?

SC - Na era colonial o carnaval aqui não existia, era mais concentrado no litoral. É inacreditável que há pessoas que hoje, com 80 anos, dizem que começaram a dançar o carnaval com 12 anos. Até 77, 78 e 80, já como Carnaval da Vitória, há pessoas que consideravam carnaval apenas o uso da roupa do sexo oposto, não sabiam que era para valorização dos nossos hábitos e costumes.

Hoje em dia, o carnaval só tem interesses regionais, choques desnecessários, já não é participativo.

PERFIL

Salvador Cacoma trabalha em investigação cultural há 50 anos. Precursor do carnaval na província do Moxico, com o seu grupo Enxame de Abelhas, desde tenra idade que começou a estudar a cultura angolana, em particular do leste do país, incentivado pela morte de seu pai.

Salvador Cacoma surpreendeu a população do Moxico quando organizou um “assalto” na Escola Camarada Tchifuchi, declamando uma poesia que questionava a ausência de António Agostinho Neto, por ocasião da deslocação ao Luena de uma delegação do MPLA, chefiada pelo nacionalista Lúcio Lara, integrada por Maria Mambo Café e outros.

Conheceu a cidade do Luena em 1972, proveniente de Cazombo, vila sede do Alto Zambeze.

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